segunda-feira, 17 de junho de 2013

CLARICE LISPECTOR - Crônica publicada na Revista Casa e Jardim nº 69, de 1960 e reeditada no nº 701, de junho de 2013

Interessante. Recebo a revista e, na contra-capa, uma "falsa" antiga publicação de Casa e Jardim. Abro. Há uma crônica de Clarice Lispector - minha musa, minha maior escritora, desde antes de tudo até sempre - na p. 4.
Creio que o que ela escreveu serviu de luz para seu romance, "A paixão segundo G.H.", de 1964, em que ela trava uma luta consigo mesma e com uma... barata. É uma batalha em que ela precisa vencer a si mesma e ao inseto, mesmo que para isso tenha de prová-lo. Senti o gosto de si e da coisa que repugna. Sentir-se gente e sentir-se bicho. Sentir-se nada e alguma coisa pra tentar voltar a ser... ser vivo.
Se Clarice Lispector tivesse me perguntado, eu saberia dizer o gosto que tem uma barata. Se bem que a que eu tive a infelicidade de comer estava bem assadinha dentro de um pão francês. Eu era criança, não tive uma grande provação existencial, naquele momento, mas me senti tão coisa quanto sentia como coisa a barata.

A QUINTA HISTÓRIA
Clarice Lispector

Esta história poderia chamar-se "As Estátuas". Outro nome possível é "O Assassinato". E também "Como Matar Baratas."
Farei então três histórias verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma - se mil e uma páginas e mil e uma noite me dessem.
A primeira, "Como Matar Baratas", começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como acabar com elas. Que misturasse, em partes iguais, açúcar, farinha e gêsso. O remédio as atrairia como comida que também era. Morreriam. Assim fiz. Realmente morreram. A outra história é a primeira mesmo e se chama "O Assassinato". Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só abstratamente me havia queixado de baratas, que nem minha eram: pertenciam a quem de direito, e escalavam os canos do edifício até nosso lar. Foi na hora de fazer a mistura que elas se individualizaram. Comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa; um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dias as baratas eram invisíveis. ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Fria, meticulosa, preparava o elixir da longa morte.  Mêdo e rancor guiavam-me. Agora eu só queria gèlidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. A receita estava pronta. Tão bem espalhei o pó que nem se via, como para baratas espertas como eu. Horas depois, no silêncio da casa, da cama imaginei-as subindo uma a uma até a área de serviço, onde o escuro dormia - só as camisas alertas no varal. Acordei em sobressalto, era madrugada. Atravessei a cozinha. E no chão da área, lá estavam elas, duras. Durante a noite eu matara. Amanhecia. Um galo cantou.
A terceira história que ora se inicia é a das "Estátuas". Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Até o ponto em que, na madrugada seguinte, acordo. Ainda sonolenta, atravesso a cozinha. Mais sonolenta ainda está a área, na sua longa perspectiva de ladrilhos. E à luz primeira, num límpido arroxeado que distancia tudo, vejo no chão sombras e brancuras. Dezenas de estátuas de baratas espalham-se rígidas. Endurecidas de dentro para fora. Testemunho o primeiro alvorecer de Pompéia. Revejo-lhes a última noite, na orgia do escuro. Em algumas o gêsso terá endurecido aos poucos, e, com movimentos cada vez mais penosos, elas ainda tentam fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto. Outras, assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer a intuição de um molde interno que se petrifica - de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da bôca. Uma, azulada, terá sentido: "quem olhar para dentro, vira estátua de sal". De minha altura de gente olho a derrocada de um mundo menor. Começa a amanhecer. Uma ou outra antena escura freme sêca à brisa. Da história anterior, canta um galo.
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Até o ponto em que vejo os monumentos de gêsso. Mas olho também para os canos, por onde à noite renovar-se-á uma povoação lenta e viva. Teria eu então que renovar tôdas as noites o açúcar letal? como quem não dorme mais sem o ritmo de um narcótico. E tôdas as madrugadas levantar-me-ia sonâmbula? viciada na tortura de procurar no pavilhão as estátuas que minha noite cansada erguia. Senti um mau prazer na visão de uma vida dupla de feiticeira, e também o aviso do gêsso que seca. E é por isso que hoje, com o orgulho da virtude, ostento secretamente no coração uma placa: "Esta casa foi detetizada".
A quinta história chama-se "Uma alma refeita". Começa assim: queixei-me de baratas.

Estranho... Notaram que ela não dá nome à quarta narrativa? Até que poderia ter recebido o nome de "O feitiço do gesso". Que ousadia, a minha.


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